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Sexta-Feira

Havia um cheiro especial no ar. O clima quente e semiúmido típico do verão do Centro-Oeste trazia um vento morno, com promessas de chuva percebidas a cada vez que eu inspirava. O céu branco era um enigma. Ora ele inesperadamente se desnublava e oferecia o mais exagerado sol, ora escurecia e desabava em água. No momento, ainda era cedo para palpitar sobre o que viria. Seja o que fosse, porém, esse cheiro de talvez era especial. Senti-lo logo pela manhã já me fez gostar do dia que se iniciava.

Quando cheguei à biblioteca, minha alegria olfativa foi complementada pela auditiva: o lugar estava no seu mais absoluto silêncio. Até a área de estudos estava sem os seus habituais sons de livros sendo manuseados, cadeiras arrastando, canetas tamborilando, folhas sendo viradas. Tudo vazio e parado. Senti-me em casa. Escolhi uma mesa no meio da sala – uma decisão atípica, já que prefiro cantos, mas dali eu podia ver o céu.

E com este triplo de sensações muito favoráveis: cheiro, silêncio, vista, me subiu uma certa ganância de completar o álbum de figurinhas dos sentidos. O paladar era fácil. Bastaria comer chocolate, e para mim estaria tudo resolvido. O tato, no entanto, teria mais exigências. Infelizmente, não dependia só de mim. Mirei de novo o céu. Branco. Impassível. Sem negociações. Talvez eu tivesse de esperar para sentir chuva. De qualquer forma, me consolei com o pensamento de que quatro de cinco sentidos, satisfeitos, não era um resultado ruim.

Mais tarde, minhas esperanças foram alimentadas. O vento ficou mais forte e mais frio e o cheiro de antes se intensificou. A empolgação voltou e eu me senti disposta e animada feito uma criança prestes a se divertir com seu brinquedo favorito. Não demorou muito e eu comecei a escutar os pingos caindo no telhado. De início, calmos, espaçados, sem pressa. Esperei, ansiosa e feliz, como quem ouve ao longe a porteira se abrir e conta os passos de alguém amado até sua total chegada. E assim se passou. Corri para festejar sua vinda. Sentir seu gelo, sua forma, sua força, seu som, seu peso. Simplesmente chovia. E então eu estava completa.

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