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Um tempo desse, comecei a escrever um conto. A ideia ferveu e, no intervalo de um sorvete, foram de cara oito páginas. No fim do dia, porém, acabou sendo mais um no meu amontoado de textos inacabados do word. Depois disso, vieram outras histórias e ele lá, largado.

Mas eu tenho uma carta na manga para dias sem inspiração: Pessoas. É só sair de casa que logo as informações que vejo nas pessoas começam a fermentar no meu cérebro, formando perguntas, depois suposições, depois consequências e voilà! Aparece a história.

Para testar mais uma vez esse método, resolvi resgatar meu conto empacado. Em dias assim, geralmente vou a um café, doceria, gelateria... Qualquer lugar que tenha mesa, cadeira e açúcar. Mesmo antes de chegar, já sentia os efeitos da experiência: Uma roupa daqui “opa, que interessante o personagem tal usar essa estampa”, um rosto dali “combina com o fulano”, um gesto, uma careta, um olhar, um instrumento, um cão.

Especificamente, registrei na mente a bengala de uma senhora, o cheiro de cigarro de um homem que quase trombou em mim, a articulação do cara que vendia balinha e ao mesmo tempo argumentava sobre algo social com outro rapaz. De mim, eu levo apenas a premissa, meus milhões de pensamentos e um certo enfeite nas palavras (castigo ou benção de quem convive com literatura mais antiga), que gosto de chamar de poesia.

Chegado ao local, depois de pedir meu doce, comecei a trabalhar. Uns conhecidos apareceram, cumprimentaram, mas tratei de ser breve. Um ponto alto do meu método é: absorver detalhes de pessoas desconhecidas. O objetivo é elas serem um estopim, uma provocação, uma munição para a imaginação disparar livre por todos os lados. Uma pessoa conhecida já vem com a história condicionada na mente. Pronta. Não gosto, não acho honesto. Além disso, pessoas desconhecidas tem a grande vantagem de me oferecerem recurso visual sem precisar do verbal. Eu mantenho meu silêncio e minha concentração ao mesmo tempo que tenho um leque de inspirações. Quase como se eu fosse invisível. O melhor dos mundos.

Duas horas depois e estava acabado. O doce e o conto. Aproveitei a tarde e continuei caminhando entre as pessoas. Observando e sorrindo. Os que devolviam o sorriso talvez imaginassem em mim simpatia, gentileza. Na verdade, eu apenas as agradecia silenciosamente pelas características que eu roubara e que tinham contribuído tanto pro desfecho do meu conto e claro, também desse texto.

 

Acabava meu lanche quando um grupo de adolescentes passou por mim. Uma garota de cabelo cogumelo e meias 3/4 me olhou por alguns segundos a mais que os outros. Foram em bando se juntar a um outro que fumava. Ficaram todos no meu campo de visão.

Continuei observando enquanto um a um colocava a boca num objeto e então jogava a cabeça para trás, como se fosse uma espécie de pose padrão, para soltar a fumaça, enquanto os outros encaravam atentamente a cortina cinza que se formava na vez, parecendo ser ela a grande sensação da atividade.

Eu me perguntei que tipo de grupo eles seriam. Será que eram os descolados a que muitos queriam ser iguais? Ou será que eram os desordeiros pra quem os mais conservadores torciam o nariz? Será que o mundo os via como o assombroso nascimento da nova geração? Ou eu é que tinha me atrasado na percepção de que eles representam uma realidade já instalada há tempos?

Logo depois desse pensamento a garota de cabelo cogumelo me olhou de novo e fumaçou. Uma charmosa locomotiva. Talvez ela tenha se perguntado ou até afirmado um igual conceito de estranheza em relação a mim, que com meu pão de queijo mordido, meu boné desproporcional (que comprei negligenciando a estética por precisar de um com certa urgência) e minha imensa jaqueta cheia de bolsos não representava a melhor definição de figura.

Ponto de vista de lá, ponto de vista de cá. O mundo é mesmo uma bola interessante. Pequeno, como diz o ditado, e ainda assim, cheio de mil e um outros mundos dentro.


 

Havia um cheiro especial no ar. O clima quente e semiúmido típico do verão do Centro-Oeste trazia um vento morno, com promessas de chuva percebidas a cada vez que eu inspirava. O céu branco era um enigma. Ora ele inesperadamente se desnublava e oferecia o mais exagerado sol, ora escurecia e desabava em água. No momento, ainda era cedo para palpitar sobre o que viria. Seja o que fosse, porém, esse cheiro de talvez era especial. Senti-lo logo pela manhã já me fez gostar do dia que se iniciava.

Quando cheguei à biblioteca, minha alegria olfativa foi complementada pela auditiva: o lugar estava no seu mais absoluto silêncio. Até a área de estudos estava sem os seus habituais sons de livros sendo manuseados, cadeiras arrastando, canetas tamborilando, folhas sendo viradas. Tudo vazio e parado. Senti-me em casa. Escolhi uma mesa no meio da sala – uma decisão atípica, já que prefiro cantos, mas dali eu podia ver o céu.

E com este triplo de sensações muito favoráveis: cheiro, silêncio, vista, me subiu uma certa ganância de completar o álbum de figurinhas dos sentidos. O paladar era fácil. Bastaria comer chocolate, e para mim estaria tudo resolvido. O tato, no entanto, teria mais exigências. Infelizmente, não dependia só de mim. Mirei de novo o céu. Branco. Impassível. Sem negociações. Talvez eu tivesse de esperar para sentir chuva. De qualquer forma, me consolei com o pensamento de que quatro de cinco sentidos, satisfeitos, não era um resultado ruim.

Mais tarde, minhas esperanças foram alimentadas. O vento ficou mais forte e mais frio e o cheiro de antes se intensificou. A empolgação voltou e eu me senti disposta e animada feito uma criança prestes a se divertir com seu brinquedo favorito. Não demorou muito e eu comecei a escutar os pingos caindo no telhado. De início, calmos, espaçados, sem pressa. Esperei, ansiosa e feliz, como quem ouve ao longe a porteira se abrir e conta os passos de alguém amado até sua total chegada. E assim se passou. Corri para festejar sua vinda. Sentir seu gelo, sua forma, sua força, seu som, seu peso. Simplesmente chovia. E então eu estava completa.

 
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