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O Rito e os Restos

Atualizado: 14 de ago.

Hoje estive em um funeral. Nada desnuda tanto os sentimentos de alguém quanto a presença da morte. Há o choro daqueles que normalmente chamam de fraqueza o pranto, há os abraços daqueles que não são dados a contato físico, há as perguntas daqueles que passam a vida evitando questionamentos existenciais, há os consolos vazios de frases feitas daqueles que pregam empatia, há o silêncio desconcertado daqueles cheios de conversa, há a surpreendente presença daqueles que estavam sempre ocupados demais. A morte nos avessa.

Ao redor do caixão, sentimentos afloram em olhos, mãos, queixo e pensamentos. Dedos se despedem, para uns, num último carinho, para outros, no primeiro atrasado. Saudade, tristeza, arrependimento, culpa, lembranças, riso. Cada observador com sua carga de emoções vai trocando de lugar. Ora senta, ora levanta, olha o morto, dá a volta, respira lá fora, assoa o nariz, senta em outro lugar e tudo se repete.

O rito continua até a chegada dos funcionários, que alheios a personalidade que se foi, cumprem seu rotineiro papel de tampar o caixão e sepultar o defunto. A última olhada. E todos seguem como rebanho para assistir a descida do ente ao buraco padronizado, tão estreito e indiferente para caber gente de seus tantos anos de história, ou mais precisamente, 69.

Novamente, um círculo se forma. Todos atentos ao trabalho que se desenvolve. Algumas crianças correm pelo campo, outras se escoram na proteção da cova, brincalhonas e sem medo, naquela idade em que a ignorância dos fatos as protege. Próximo a elas, porém, havia uma maior: Um menino segurando uma rosa, que chorava e murmurava “tchau, vovô”. Consciência. A dor, condição do entendimento e dos sentimentos resultantes, chegara naquele jovem coração.

E ali ficou, até a terra final, o menino, a viúva e uns poucos resistentes. Todos os outros já iam a caminho de casa, perdoando seus sentimentos, justificando, fazendo promessas que durariam até o dia seguinte, a semana que entra ou no caso dos mais bem memoriados, a cada data daquela. Até que a morte os convidasse novamente a sua confusão, ou talvez, ao seu encontro, quando já não há mais oportunidade de sentir.


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